O MUNDO A SEUS PÉS
"Feliz, aquele que conseguiu compreender a causa das coisas."
Virgílio, poeta romano
Fui ao centro do mundo e procurei um banco muito pequeno, enigmaticamente baixo, onde me sentei. Era de tal forma baixo, ou de tal forma mágico, que a minha linha do horizonte se situava ao nível dos pés de quem passava perto de mim. Sentei-me e dispus-me a olhar o mundo assim, visto de baixo.
Vi sombras e pés em todas as direções. Os sapatos assumiam-se como o elemento de identidade dos indivíduos, mas era impossível fazer a avaliação de conformidade com a pessoa que os utilizava, reconhecer a consonância entre a marca e o caráter, estabelecer a relação entre o estado de conservação e os sinais do rosto. Talvez os mais depauperados correspondessem a devedores e os mais impolutos a credores. Talvez. Porém, todas as conjeturas pecavam pela fragilidade e todos os prognósticos eram muito falíveis, dada a minha circunstância. Os pés desenhavam bailados, marchas, lentas ou rápidas, ou o simples calcorrear de percursos. Insegurança ou certeza, leveza ou densidade, inibição ou assertividade, pressa ou atraso, não posso garantir.
Vi folhas de Jornais abandonadas, com anúncios de procura de emprego e de relações sérias com jovens educadas e senhoras respeitáveis.
Vi pernas que eram esculturas móveis, lembranças de Andy Warhol e de Joana Vasconcelos. Esforcei-me por descortinar as das mulheres e desencadear estados de alma mais intensos mas, naquela situação, os indicadores eram ambivalentes, imprecisos, ou contraditórios para que arriscasse uma certeza. Não raro, pernas depiladas de homem concorriam com a acentuada musculatura das gâmbias de mulher, para meu desespero e hesitação. A utilização de calções, mais habitual no estio, aumentava o meu grau de incerteza e o risco de me iludir e, consequentemente, de falhar o diagnóstico, desiludindo-me. O centro de gravidade, situado na cintura pélvica, estava interdito à minha observação, por demasiado distante. Aí, na cintura pélvica, se definiam os elementos essenciais da locomoção e as opções que me teriam possibilitado uma maior compreensão dos elementos avulso que acabo de descrever. Para não falar do rosto e da expressão do olhar, que só podia tentar imaginar.
No meu banco, só me era dado compreender o acessório. Não tinha visão global, não conseguia integrar os elementos no seu contexto, não atingia o essencial. Desisti.
Levantei-me e regressei a Portugal para voltar a ser quem era. Encontrei incerteza, muita previsão errada, muita vida atraiçoada, muito projeto adiado e promessas por cumprir. Para meu espanto, os nossos timoneiros estavam todos sentados em bancos baixinhos, exatamente iguais ao que eu tinha abandonado.
Antero Afonso